“Leva eu!”
Era uma vez um
bom velhinho...
- Ah! Já sei.
O Papai Noel!
...chamado Sr.
Luís. A barba dele foi crescendo e ficando branca. Ele era um homem bom, ajudou
muita gente. Fez bem para os trabalhadores e também para os donos da indústria
e os fazendeiros.
- E cadê ele,
tio?
Ele está agora
numa torre alta. Não pode sair da lá. Vai passar o Natal lá em cima, sozinho.
- Então ele
está preso?
Ele ajudou
tanta gente, criou empregos, construiu escolas, trouxe médicos para atender os
pobres. Mas nem todo mundo gostava dele. E agora está preso, é isso. E hoje
está triste.
- E o que vai
acontecer com ele? Até que dia ele vai...
Ô, menino! Sossega.
Me deixa contar a história, oxente! Põe sentido, pois está acontecendo agorinha
mesmo.
Cena 1: O velho na torre alta
Olha o Sr.
Luís ali, no alto da torre. Dois guardas vieram junto com ele, pra vigiar.
Querem ver os fogos de artifícios, as luzes das árvores de Natal. O Sr. Luís
pode fumar um cigarro, de repente, se distrair um pouco.
O velho está
na laje, no ponto onde o helicóptero desceu trazendo ele numa noite fria de
abril, neste ano chato. Um guarda diz pra ele ir mais para o fundo do terraço,
com cuidado, pois a iluminação foi desligada.
E ele não pode
vir até o parapeito acenar para seus amigos e amigas lá na rua. Centenas deles
e delas estão acampados lá embaixo. Acendem fogueiras, cantam e tocam violão.
Toda noite dão boa noite ao Sr. Luís. E todo dia amanhecem com a esperança de
vê-lo saindo livre, de volta para sua casa, sua família.
O outro guarda
atende o telefone, chama o colega e descem as escadas.
- Nós vamos lá
na sala da chefia para revelar amigo invisível. Fica quietinho aí, hein Seu
Luís...(kk)
- Não vai sair
voando por aí, brincou o outro. Não vai tomar Red Bull, viu? (kk-k)
Ora, pensa o
velho, eu não tomo esse negócio. Queria mesmo era uma cerveja gelada, um
litrão, pra repartir com meus companheiros. Que Natal sem graça, minha gente...
Que cidade feia.
Cena 2: Chega uma carroça
Mas que zoeira
é essa? Outro helicóptero? Não, não era. Não tem hélices e nem luzes. Só
barulho de sinos e estalos de chicotes. E agora um tropel na laje. Bichos
grandes puxando uma carroça estranha.
- Ô, barbudo!
O que faz por aqui? Não devia estar curtindo sua aposentadoria com os netos?
Era o Papai
Noel, puxando as rédeas e falando shiu! shiu! para acalmar as renas, que
arrastavam os cascos e fungavam feito pôneis de carrossel.
O Sr. Luís
sarou do susto e se põe a conversar com o outro velho, de barbas mais longas e
mais brancas que as suas. E com uma pança bem maior, é claro. Pois o rango ali
da torre não é nenhuma ceia, meus amigos. Marmitex enjoativa, sem tempero, sem
farinha.
Mas nós estamos
encabulados. Ali não há crianças que possam receber presentes. E velhos não
ganham nada. Só meia social e revista de palavras cruzadas. Ah!... Nosso velho
só queria ganhar um presente, um só. E nem precisavam embrulhar, enrolar,
inventar.
De repente, o
Sr. Noel já não dava muito papo e olhava em volta, meio ansioso. E aí cochichou
alguma coisa e se afastou para perto da escada:
-Lá vem o
japonês. E parece que trouxe minha encomenda...
De fato, o
japonês vinha com várias caixas grandes Não pareciam pesadas. Entregou ao
gorducho, que ia ajeitando tudo na garupa da carroça. E aí se puseram a
negociar, falando de preços, cotação, moedas. Na hora de contar o dinheiro, os
dois se afastaram e deram as costas ao Sr. Luís.
Cena 3: A boiada estourou
O Sr. Luís é
um cabra curioso e quer entender essa carroça sem rodas que se arrasta pelo
céu. Pisa no estribo, sobe e vai procurar onde é o freio, se tem buzina.
Trabalho bem feito por ferreiros e carpinteiros, admira ele. E se imagina na
linha de produção, em sua função de metalúrgico. Alguém tinha que tornear pinos
e parafusos... Será ferro ou cobre?
De repente,
luzes, bombas, rojões! Deu meia-noite: é Natal. As renas se assustam com o
foguetório e partem em disparada para cima, para o céu, rumo ao norte.
O condutor
oficial se volta e corre a balançar sua pança. Grita palavras esquisitas que só
as renas entenderiam, mas não adianta. Já vão longe. Aí ele xinga outras coisas
incompreensíveis, tipo Scheisse e
“Dona Véta”. Vai ficando pequeninho lá no terraço da horrível torre.
Nisso, os dois
guardas voltam pelas escadas, com seus fuzis. Suas armaduras pretas de ninja e
suas lembrancinhas do amigo secreto. E tagarelam, sem noção.
- Olha a
porcaria que eu ganhei, parceiro... O que é que eu vou fazer com um livro, pô?
- Eu também,
cara. Dei um DVD do Rambo e ganhei um dicionário. Pra que serve isso?!
De repente, cai
a ficha. Eles deixaram um elemento e agora estão vendo dois. Será que beberam
em serviço?
- Cara,
peraí...
- Ô, japonês!
Mas você não devia estar de folga lá em Foz?
- E você aí, Sr.
Luís? Que fantasia é essa, meu velho?
Resultado: o
japonês explica que esse velho é outro, o famoso Noel. E que, na verdade, japonês
está ali a serviço, para dar um flagrante. Vai enquadrar o Sr. Noel, vulgo
“Papai” (e até mesmo “Santa”) pelos seguintes delitos: entrou no país sem
passaporte, importou animais exóticos sem alvará da vigilância sanitária (ou da
defesa agropecuária, a conferir), trafegava com veículo fora de série e sem a
nova placa do Mercosul, etc. Complicou para o idoso, dizem.
O japonês vai
se safando, não sei até quando. Mas não se preocupem, meus caros e minhas
queridas, pois o bom velhinho dos presentes vai escapar de boa. Sem o trenó e
sem as renas, não há crime. E ele saberá enrolar os guardas com um papo sobre o
acordo de Schengen e o tratado de Frederico Westphalen... Onde fica? Quem? Não
demora muito e Noël já está fazendo um bico no shopping de outra capital, no
Rio Grande do Norte.
Cena 4: O moleque Severino
O Sr. Luís
toma as rédeas e aperta a buzina, mas nada. As renas aceleram ainda mais e
sobem, sobem. Aí ele se lembra de sua infância no agreste e arrisca um abôio: ô-eô... ô-eô... Perda de tempo, pois
rena não é vaca e muito menos boi.
É, meu chapa.
Deu bode. E que bode! O jeito é se segurar e não olhar para baixo, pensa seu
Luís, quando leva mais outro susto. Do meio dos embrulhos de presentes, surge
um vulto, uma criatura, que se espreguiça e reclama:
- Tem que
acender os lampiões, tio! Logo vi que não era meu patrão...
- Patrão o
cacete. Mas quem é esse pirralho escondido na carroça?
- Sou o
ajudante do Santa Klaus. E isso não é carroça; é trenó...
- Eu sei, já
vi. E tinha que vir escondido?
- É que sou
“dimenó”, não posso trabalhar pelo mundo afora. Mas eu te juro, velho, eu
preciso. Minha família mora longe e lá faz um frio do cão...
E dizia isso
enquanto amarrava a carga e acendia os lampiões. São importantes para a
navegação e as entregas, tudo bem anotado num bloco de papel, ricamente
encadernado. Aí pediu licença, tomou as rédeas, segurou o chicote e assumiu o
posto de condutor. Era o colorido veículo de Papai Noel, que a criançada espera
todo ano.
Seu Luís
explicou ao rapazinho o que havia acontecido no terraço, até onde entendeu.
Tudo muito rápido. Mas deixou claro que não era uma boa ideia voltar para lá. A
barra ia pesar para todo mundo, com ou sem motivo. E o moleque, menor de idade,
poderia ser encaminhado para uma daquelas instituições de...
- O quê?
Res-so-ci-ali-zação? Tá brincando, velho... Eu vou é me mandar. Depois alguém
vem buscar o Sr. Noel... O “Rei da Suécia” envia um avião Grippen, de
repente (kkk)...
Cena 5: Dona Ivana mudou-se
Poucos minutos
depois, aparecem luzes de uma cidade grande. O moleque puxa a rédea, as renas
dobram o pescoço e o trenó se inclina para descer. Aí Seu Luís grita:
- Mas eu
conheço essa cidade! E olha lá... Eu morei naquele palácio ali.
- Ô, meu tio...
Conta outra, pois você não tem cara de rei.
- Sim, morei
ali oito anos. E o que você veio fazer aqui? Deixar um presente para aquele...?
- Deixa ver a
lista. É para “aquela”, é ela, uma senhora. Dona Ivana escreveu uma cartinha
pro meu chefe.
- E pediu o
quê?
- Pediu
sossego. E eu vou jogar uma caixinha de bom parecer pela chaminé real...
- Não é real;
é presidencial. Deixa pra lá. Tanto faz, pois Dona Ivana não mora mais aí.
- Mora, sim.
Consta aqui no meu aplicativo que ela mora aí até o fim deste ano... Mais uma
semana.
- Vai por mim,
garoto. Não deixa presente nenhum aí... Ou deixa comigo que eu entrego e...
Epa! Que foi isso?
As renas nem
chegaram a pisar o calçadão ao lado do palácio. O trenó deu um tranco com a
brusca arrancada. Subiram de novo para o lado do nascente, bem de frente a
enorme lua cheia que iluminava a noite do nascimento da esperança e da justiça.
- O que foi
isso? Repetiu Seu Luís.
- Calma,
velho. Já passou. Acontece que esses belos animais são de boa, vieram em paz. E
detestam armas e gente feia...
- Armas? Como
assim? Eu não trago nem um canivete...
- Lá embaixo,
não viu? O gramado está cheio de canhões e pittbulls... Tem trabuco até na
porta daquela igreja moderninha... Vam’bora...
Cena 6: Natal, Natal das crianças
As renas não
são nada bestas. Vão sobrevoando o país e evitam cruzar o mar. Se for preciso,
descem para comer grama, beber água. E, depois, lá por cima do Canadá, pousam
na neve só para descansar. E por falar em neve, avisa o ajudante de Papai Noel,
o plano de voo incluía Groenlândia, Islândia e outras terras frias.
- Ô, velho!
- Para de me
chamar de velho, ô pirralho! Meu nome é Luís.
- E o meu é
Severi. Muito prazer.
- Severino?
Oxente...
- Severi...
Podes crer. Ok, então. Veste essa roupa aí, na mochila do Papai Noel. É o traje
oficial para entregar presentes e para aguentar o frio que nos espera.
O velho Sr.
Luís se diverte ao vestir aquela roupa, um pouco larga. Ele gosta da cor,
vermelha. E agora já ri dessa história
toda, tão de repente, que vai tomando um rumo inesperado mas agradável. Grandes
possibilidades.
Tão entretido
estava a calçar botas e vestir luvas, que nem viu o trenó baixar numa cidade
nordestina. O ajudante disse que ficava vigiando os animais, enquanto ele, Sr.
Luís entrava naquela igreja. As renas são mansas, mas a molecada não pode
cutucar na virilha. Levam coices.
Lá vem o gordo
com a enorme sacola de presentes. Vem até torto, sob o peso. Os meninos e as
meninas voltaram a sorrir, depois de um grande drama. Um ladrão havia entrado
na igreja na semana anterior. O idiota roubou todos os brinquedos, roupas e
livros doados pelas boas almas daquela cidade. Que crueldade!
Mas, de novo,
as crianças puderam sorrir e acreditar no Natal e na bondade das pessoas. Sr.
Luís Noel não demorou muito, pois tinha que seguir para longe, muito longe. Ia
saindo da igreja, em direção ao trenó, quando uma senhora, que ajuda na
Pastoral da Criança, reparou:
- Esse velho
nos trajes de Papai Noel parece muito com um conterrâneo meu... É a cara dele.
O ajudante
ouviu aquilo e perguntou onde era a cidade do Sr. Luís. E se ele queria dar uma
passadinha por lá. Não estava muito fora da rota e resolveram sobrevoar
Pernambuco. Só um relance, uma despedida, pois não era hora de descer lá. Bom
mesmo é na festa de São João. E essa data pode esperar.
Cena 7: Chá de sumiço
O ajudante de Papai
Noel guiava as renas enquanto mantinha um olho no caderninho. Sua planilha não
estava completa. Talvez tivesse que pedir ajuda a anjos, fadas e Padim Ciço. De
repente, leu um nome: Batista? –
E o endereço
era longe, muito longe dali: Cananéia. Que presente esse sujeito tinha pedido?
Um chá muito especial, responde o ajudante. Isso é pra lá da Juréia.
- Ô, Severino,
agora eu é que tenho pressa. Toca adiante essa carroça pois não sei se vou
aguentar esse frio todo. Deixe eu amarrar esse gorro e acelera esses bodes
aí...
- Mas e a
entrega, velho? Temos um nome a zelar aqui na firma. Logística, sabe? Não viu o
filme do Tom Hanks? Aquela bola pra entregar...
- Vai por mim.
Esse camarada aí já tomou um chá de sumiço. E é outro cara que espera um
presente muito especial, que dispensa embrulho de papel. Vamos vazar...
Saindo de Cena: Agrados e planos
A lua cheia
agora reflete sua luz sobre amplas camadas de neve. As renas reconhecem o
caminho e vão sem precisar de rédea nem chicote. É o gostoso caminho de volta.
Voam mais rápido ainda, felizes também com a liberdade que espera por elas: no
pasto, soltinhas da silva.
A Groenlândia
não é verde como o nome indica. E o Polo Norte vai ficando um pouco à esquerda.
Fiordes, florestas de pinheiros, tundras e taigas... E neve, sempre neve,
branca e pura.
Seu Luís
aproveitou para perguntar o que havia nos pacotes. Estava curioso.
- Ah! Os
pacotes do japonês? Cigarros. São cigarros...
- ...do
Paraguai?
- Sim, meu
chapa. Estamos levando pacotes de cigarros da indústria paraguaia. Mas fica
frio, pois tenho nota e tudo. É pra ajudar a indústria de lá, pois um pais não
sobrevive só com venda de bugigangas, sabe?
- E quem vai
fumar tudo isso, Severi?
- Os duendes?
- Os doentes?
- Não, os
du-endes (deve ser o gorro nas orelhas), são os carinhas que trabalham na
fábrica de brinquedos do Papai Noel.
- E a saúde
deles?
- Ah! Eles
aguentam... Não viu o caipora que fumou pólvora no cano da espingarda?
- Marvada
carne. Belo filme.
- Sabe o que
é, Seu Luís? O trabalho desses duendes não é brinquedo... Se me permite. E o
pior é que cogumelo não dá o ano inteiro. Só no outono e em certas florestas
antigas.
- Eles bebem
chá desse troço? Mas não tem uma comissão de fábrica, plano de saúde?...
- Sim, bebem e
aí ficam muito doidos. A fábrica até concede uns dias de férias pra
moçada... Mas no resto do ano, é um
cigarrinho básico, na pausa do trabalho. Sabe como é.
- Sei. Quer
dizer, me lembro. Tá, deixa pra lá. E eu queria era tirar a friagem com uma
dose de conhaque.
- Pode ser
daquele conhaque barato, marca “Presidente”? (kkk)
- Boa essa,
gostei... Muito pândego o guri...
- Ah! Moleque... É nóis na Lapônia!
- Polônia?
Tive um amigo lá, o Lech...
- Não, Polônia,
não. Tá muito longe. Isso aqui é o norte da Finlândia, seu Luís.
- Finn...lândia.
Saquei: terra do fim do mundo.
- Mais ou
menos isso. Lugar bom pra sair de fininho...
*******
FINN
(aplausos)
(Cara,
peraí. Temos trilha sonora para os letreiros: “Oi, leva eu, eu também quero ir.
Quando chego na ladeira, tenho medo de cair... Leva eu...”)
Digitado
por J. T. S. em 25.XII.18