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domingo, 11 de março de 2012

FILOSOFIA SÓ PARA MULHERES

PARTE II – LIVROS E ABORDAGENS (para todas as alunas - tenham ou não ido à aula, com ou sem sono, etc.)
CONTINUAÇÃO DO RELATÓRIO DA PRIMEIRA AULA DE FILOSOFIA EM UM CURSO DE GRADUAÇÃO QUE SÓ TEM MULHERES, EM HOMENAGEM AO DIA DA MULHER INTERNACIONAL

Aqui, vamos revirar a mochila levada à sala de aula. Que livros foram exibidos às alunas no primeiro dia? E como encaramos essa tarefa de falar de filosofia em um curso de graduação?
Sobre a “postura”, como diríamos nos anos oitenta: preferimos uma amostragem – ler trechos inteiros de autores relevantes, sem intenções de cobrir todas as tendências e épocas da filosofia e sem mastigar resumos.
Carrossel (tipo “queridos pôneis”, mas não montanha russa de parques perigosos): podemos pegar o bonde andando, ou seja, pular no carrossel enquanto ele gira, ou seja, começar por qualquer ponto da filosofia e avançar ou recuar conforme a necessidade – mas sem sonhar com um regresso infinito a uma época inicial e autêntica, pois isso é criado, etc. (Essa idéia, assim ilustrada com o brinquedo giratório, vem do colega e ex-professor Álvaro Valls).



Sobre e contra o estereótipo do tipo “filósofo escreve coisas difíceis e sem sentido”, escolho por acaso o tema paixão”.
1.    O livro Paixões, que tem Jacques Derrida como autor e é ampliado por longas notas do editor, é mais uma artimanha da indústria editorial (ou gráfica, no caso...) que trata esse autor como mina de ouro sob a chancela do governo francês. Não é fácil conseguir deles a cessão de direitos autorais e não sairia de graça. Aqui, publicam em separata o que antes fora parte de uma coletânea de doze ensaios. E depois dizem, com a maior cara de pau, que esse ensaio ao lado de outros dois, poderia compor uma trilogia sobre o “nome”. E não adianta chiar, caras alunas, pois se alegarmos que tiraram a obra (aliás “obra”, entre aspas... pois nem chega a tanto) do contexto original, esses franceses ensaboadas iriam escorregar para novas perguntas, do tipo “mas o que é o contexto, o texto, o tecido?” e também, claro, “o que é a origem?” Percebe-se logo que não vamos ver nada ou quase nada sobre paixões nesse livrinho de 1993, pois o tema é tratado de maneira oblíqua, atravessada. Derrida e seus seguidores não se importariam com as manobras todas que levassem a aparente desatenção com os gêneros textuais até a de-generação, pois tudo lhes vem a ser pertinente. E quem quiser ver uma boa amostra da “metodologia” de Derrida, que é também seu estilo e sua ontologia, sei lá, veja o livro Do espírito, que em grande parte é sobre o uso de aspas – um sintoma de nossa coragem ou nosso medo, equivalente a cochichar, falar, insinuar, mencionar, gritar... mas não suspirar, pois não há paixão nessas folhas.

2.    As paixões da alma, livro do conhecido Descartes. Aí, sim: todas as paixões e até toda a “natureza do homem”. Claro, do homem separado em corpo e alma. Além da famosa solução de link entre corpo e alma: o plug que conecta (cuidado com a voltagem!) essas duas partes do “serumano” é uma glândula, que fica no cérebro. Aliás, dirá o campeão do racionalismo, que errou feio em cardiologia: as paixões não se localizam nem se produzem no coração, embora esse músculo involuntário sirva para aquecer o sangue – o sangue circula quando esquenta e desce depois que esfria... Nada sobre pulsação e válvulas! Mas a obra vale como listagens de paixões da alma. E alma é psique em grego. E a psicologia, antes de Freud e de Jung e de ratos em laboratório, era uma das áreas da filosofia. Sim, senhoras. Vejam a catalogação dos livros na biblioteca da UFU e no mundo inteiro: os livros de psico levam o número 150, ou seja, uma sub-seção da filosofia, que é 100. Alegria, tristeza, amor e ódio, remorso, admiração, ciúmes e invejas e tantos estados de ânimo e de desânimo (alma, alma) classificados e definidos pelo procedimento da classificação e da definição (deu nisso a dedução). Ora, Descartes não ajuda em transplante de coração e nem substitui o Prozac, mas... continuamos a ler esse gênio do pensamento e das aventuras extra-classe. E podem ver o filme do Rossellini sobre ele, bem ambientado na Holanda do século XVII. E a mulher dele também dá um show de sabedoria, citando centenas de ditos populares.

3.    Hobbes não era um lobo apenas mau. Sobre o livro A natureza humana, de Thomas Hobbes, esse injustiçado por alguns professores de cursinho – negócio em crise depois do ENEM – viva! Viva! - pois não basta repetir que  “o homem é o lobo do homem” (e a mulher, a loba, etc.), pois a frase ficou pela metade. Ele também, que teve influência na política imediata, contemporâneo de Descartes, queria saber como é o homem, sua natureza, já sabendo que somos moldados pelo que somos ao nascer (nato) e pelo que aprendemos – nature mais nurture. Mas esse livro foi parar na mochila por uma nobre razão: eu quis mostrar às moças e senhoras da sala de aula que um filósofo também escreveu coisas leves, teve idéias e soluções como nós temos hoje. Hobbes deixou uma autobiografia em versos, tipo cordel nordestino... Fantástico! E nesse livro sobre a natureza humana, de 1640, encontramos uma feliz analogia com uma corrida de gente a pé, como as atuais maratonas; Hobbes distribui as paixões em uma corrida, de acordo com nossas reações no meio de outros competidores. Muito elucidativa e favorável a meu intuito inicial de tornar mais simpáticos os filósofos de qualquer tamanho.

4.    Que tal lermos um livro só de entrevistas com filósofos? A editora Ática publicou uma série de entrevistas feitas pelo jornal francês Le Monde, com diversos filósofos da hora nos anos 1980 – Filosofias: entrevistas do Le Monde, São Paulo, Ática, 1990. Derrida é um dos entrevistados, mas esqueçam o tema da paixão. E Hobbes jamais teria sido entrevistado, pois esse é um gênero novo, do jornalismo, que só se tornou possível com o desenvolvimento da esfera pública, no século XIX, com a qual nem poderia ter sonhado o monárquico Hobbes. Mas o  livro é bom para dar um panorama da eventualmente excêntrica filosofia francesa, além de dois alemães, meio perdidos ali, inclusive Habermas, meu “objeto” de estudo mais demorado.

5.    Outra maneira interessante de entrar na sofisticada conversa dos filósofos é a obra, da editora Ediouro, é o livro da francesa Anne Amiel, que nos traz 50 grandes citações filosóficas explicadas (1990). Algumas alunas acertaram umas cinco das mais famosas frases, inclusive “penso, logo existo”, “só sei que nada sei”, etc. O lema de Hamlet, na verdade o dilema entre ser e não ser, bem que poderia estar ali, misturado com Heráclito. Mas, essa francesa, permitam-me dizê-lo, ficou refém da seriedade e... não falou de paixão, não trouxe citações sobre amor e ódio – no máximo, passou perto com “prazer” (Epicuro) e “desejo” (Descartes).


6.    O professor também propôs um jeito de apresentar a filosofia. Não trata de temas, nem de problemas, nem de épocas e escolas da filosofia. Não foi por aí, mas pelo “viés” (outra gíria da pedagogia dos anos enta) do gênero literário. Está esgotada a primeira edição de seu livro Ensaios filosóficos e peripécias do gênero (Caxias do Sul, EDUCS, 2006, 149 p.), mas não fiquem tristes, pois enviaremos por email um arquivo com o primeiro capítulo, para comentários na próxima aula. Que tipo de texto os filósofos escreveram e escrevem e o que há de interesse filosófico nessas opções? Você tem que escrever uma monografia para obter o grau de mestre ou doutor. E não levam muito a sério quem escreve ensaios... Mas será que pensamos enquanto escrevemos coisas em um gênero tal, etc.? E vocês sabem que certas coisas se nos revelam mais enquanto escrevemos que antes, quando tentávamos só pensar e falar. Um texto também nos procura.

7.    Por fim, até por causa da magia do sete e porque não levei oito livros, para não assustar as alunas, um comentário sobre o livro A universidade iluminista. Eis aí um ciclo que se fecha em um trabalho que continua: uma coletânea de gente da casa, da FACED, organizada por um professor de vocês, o Prof. José Carlos S. Araújo. Em dois volumes, temos um desfile de filósofos e cientistas nos últimos 250 anos: Kant, Schelling, Fichte, Schleiermacher, Hegel, Humboldt, Weber, Nietzsche, Max Scheler, Whitehead, Ortega y Gasset, Heidegger, Gramsci, Jaspers, Gusdorf... Ficaram tontas? Eu fico. Não é para menos. E ainda os recentíssimos Lyotard, Derrida e Habermas. A obra começa com as considerações sobre o conceito de “iluminismo”,  movimento também chamado de “esclarecimento” e termina com as recomendações de uma certa convenção de Bolonha, em 1999, sobre e para as universidades de hoje.

Com isso, encerro o relatório da primeira aula. E, ao contrário de outras áreas, outras audiências, aqui não precisamos nos esforçar para vender o peixe: a importância e a pertinência da filosofia estão bem assentadas e são bem aceitas. Restará a briga pelas tendências e ideologias, mas isso é assunto para outras aulas. De início, queremos trazer umas amostras de filosofia viva e de certa forma pura, ou seja, ainda não “aplicadas” – nem mesmo à nobre causa da educação. Sem pressa, aliás, que estou em fase de desacelerar, quando já não deveria inventar nada...

Prof. Dr. Bento Itamar Borges – Instituto de Filosofia - UFU


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